Terça noise #4: O ano das cruzes na era das máquinas, parte 1
O monstro do tradicionalismo e do conservadorismo estadunidense personificados nas melhores obras de horror sônico de 2024.
I prayed to God asking for um álbum barulhento esse ano pra me deixar com a cara tensa e que tem uma capa com uma cruz, and I prayed so hard that He gave me two of them.
Eu começo o terça noise de hoje, na verdade, com uma citação revisada de um post da minha própria autoria diretamente do meu bluesky pra introduzir o tema desse texto que talvez ficou mais longo do que devia.
Dois discos muito importantes pra quem é zé barulho. Suas temáticas me soam parecidas, mas seus pontos de vista são completamente opostos.
Hoje eu quero falar sobre os horrores sufocantes que o Knocked Loose conseguiu criar em You Won’t Go Before You’re Supposed To. Também vou entrar na crise de ansiedade sonora que o Chat Pile criou com Cool World na segunda parte do ano das cruzes na era das máquinas, na semana que vem. Vou concluir — spoilers — como esses dois discos possuem em comum pegar um imaginário do horror pra construir narrativas aterrorizantes.
O que é incrível nesses dois discos é como eles constroem ambientações angustiantes fazendo barulho de formas tão diferentes, mas que parecem se completar de alguma forma estranha. E eu não vou mentir: tô com um baita medo de soar como um adolescente revoltado escrevendo esses dois textos. Aqui eu uso um linguajar familiar pra quem é fã de terror, e talvez eu não consiga convencer exatamente só pela escrita os horrores reais que esses discos evocam, então eu sugiro fortemente vocês escutarem os discos antes de ler esses textos. Ou durante a leitura, pra ornar bem com o que tá escrito. Você que sabe. O texto de hoje vai ser especialmente longo porque eu tenho hobby em ser prolixo. Eu também quero realmente entrar a fundo nas sensações que o disco causa, fazendo jus a um dos melhores lançamentos do ano pra mim.
Então, se você gosta de discos com temática de horror e um som sufocante e estonteante nos timbres graves e ritmos muito rápidos, ouve o You Won’t Go Before You’re Supposed To. Ainda mais se você gosta de metalcore, hardcore mais tradicional ou alguma vertente do metal que seja mais subterrânea, como o grindcore e o death metal. Não que o disco seja necessariamente outra coisa a não ser um trabalho excelente de metalcore. Mas existem algumas particularidades nele que eu imagino ser de maior agrado se a pessoa é acostumada com esse som mais sujo, amedrontador e desafiador.
E pra entender um pouco disso tudo, vou pegar emprestado um conceito que eu uso bastante por aí, mas que é geralmente utilizado pra entender diálogos entre a música e a tecnologia: a ficção sônica.
Contar história com barulho
Esse termo foi criado pelo jornalista, crítico cultural, DJ e inspiração pessoal Kodwo Eshun no livro experimental More Brilliant Than the Sun: Adventures in Sonic Fiction. Nesse livro, que é parte ensaio, parte teoria, parte crítica musical; Eshun usa como estudo de caso a música do atlântico negro, explorando como o próprio som pode ser utilizado como elemento narrativo, sem necessidade de pensar em alguma letra musical — mesmo que muitas vezes ela seja utilizada pra complementar o que a música tem a dizer. Esse conceito, por mais parecido que possa ser com o álbum conceitual, fala mais sobre elementos de produção e de manipulação do som pra criar camadas sensoriais que complementam a história da música. Ele fala, por exemplo, sobre o rhythmachine das baterias eletrônicas hipnotizantes, comentando sobre como a utilização desses artefatos ajuda a música contemporânea a entrar de vez na nossa psique.
O curioso é que Kodwo Eshun usa da ficção sônica pra ser um contraponto à hegemonia da crítica musical em relação ao rock and roll na época — o livro foi lançado em 1998. O autor considera ultrapassado tudo aquilo que diz respeito ao puro virtuosismo teórico da música, que deixa por muitas vezes comunicar com o público de uma forma mais cerebral.
E eu vou utilizar dessa capacidade do som contar histórias por si só pra falar sobre rock barulhento hoje. Talvez uma contradição, até mesmo um certo sacrilégio ao termo. Mas o tema de hoje é dos mais profanos que a gente pode ter.
O som de Oldham County
Uma coisa que chama a atenção das duas bandas é a localidade geográfica delas. O Knocked Loose vem de Oldham County, localidade do Kentucky que fica do lado de Louisville. Enquanto isso, o Chat Pile vem de Oklahoma City. As duas bandas vêm daquele vasto centro dos EUA, e mesmo que tão distantes geograficamente possuem em comum cidades com uma tradição ultra conservadora, que acaba sendo alvo de crítica constante nas músicas deles. De formas bem distintas, esse conservadorismo é personificado musicalmente naquilo que sufoca nossos ouvidos.

O Knocked Loose tem uma trajetória bem interessante. A banda, que hoje em dia tem como formação Bryan Garris nos vocais, Isaac Hale e Nicko Calderon nas guitarras e nos vocais, “Pacsun” Kaine na bateria e Kevin Otten no baixo; começou com alguns lançamentos muito bons, até ja considerados clássicos no que se diz respeito ao beatdown hardcore. E verdade seja dita: por mais que eu pessoalmente goste muito desse subgênero do hardcore, muitos desses sons acabam sendo repetitivos pra quem não é tão ligado nas bandas que fazem esse som. É um tipo de música que ou você gosta por soar tudo meio parecido, ou você não gosta pelo mesmo motivo. Não me parece um lugar tradicionalmente frutífero pra trazer novas influências e novas texturas. E tá tudo bem. Existe uma linguagem própria e muito interessante nisso tudo.
Os primeiros trabalhos do Knocked Loose fazem muito bem o que os códigos de conduta e de composição do gênero pedem pra uma banda fazer. Tanto o EP Pop Culture quanto os álbuns Laugh Tracks e A Different Shade of Blue são genuinamente ótimos no que se propõem: músicas ferozes, feitas pensando em um determinado público de marmanjo que roda bracinho em mosh pit. A estrutura de ter o verso, o refrão, o crescendo, o chamado clamando alguma coisa revoltada e o breakdown com riffs estonteantemente rápidos e pesados é repetida ad eternum aqui. Um destaque dessa fórmula é o chamado do vocalista Bryan Garris imitando um cachorro latir em Counting Worms, que virou um momento de certa forma viral dentro da cena.
Mas uma coisa sempre pairou nos entornos da banda: um senso de horror bem específico incorporado nos sons que eles fazem. Algumas passagens inquietantes, algumas influências de trilhas sonoras de filmes de terror, sempre estiveram presentes de certa forma no Knocked Loose, como uma influência praticamente secundária.
Até eles lançarem o EP A Tear in the Fabric of Life em 2021.
O terror consome o som
E é exatamente aqui que essa trajetória de destaque do Knocked Loose fora da cena começa.
Minha trajetória incorporando um personagem trevoso péssimo também. Mas o texto pede.
A Tear in the Fabric of Life é um EP conceitual que conta a história de um acidente de carro. Não vou dar muitos spoilers porque é um trabalho excelente pra quem gosta de música pesada de uma forma geral. Além disso, tem uma animação que vai acompanhando o trabalho que é simplesmente maravilhosa.
Aqui, o vocalista Bryan Garris transforma sua voz em algo extremamente característico. Um grito que faz a gente ficar em dúvida se é uma expressão do puro ódio ou se é um pedido de socorro desesperado. É um ponto na música da banda que muita gente demora pra acostumar de primeira, mas é inegável como essa expressão combina com a aura densa do EP, completando essa atmosfera sufocante que chega a ser desesperadora, trazendo imagens de um mundo destruído e desesperançoso.
O EP consegue exceder tão bem esses parâmetros que chega a romper convenções do gênero, chegando mais perto do metalcore do Converge e do Botch, mas ainda assim trazendo um elemento mais tenebroso que parece por vezes sido emprestado do black metal. Portanto, preparem-se pra um som que ao mesmo tempo soa melancólico e desesperado, com uma forte incidência de evocações do imaginário do terror. Muito som agudo imitando uma faca, barulhos que evocam uma batida de carro e coisas similares. Tudo isso guiado por um rádio que toca clássicos do Beach Boys. Vemos aqui os primeiros indícios do que eu entendo como ficção sônica transportada pro universo da música pesada: o próprio som, produzido por Will Putney, cria potências de histórias criadas sem a necessidade de termos um conteúdo lírico pra ligar os pontos. Mesmo assim, temos um conteúdo lírico que eu não vou adentrar pra não dar spoilers dessa experiência genuinamente única.
Então, depois do sucesso desse EP, todos nós do mundinho Knocked Loose ficamos esperando o lançamento do disco. Mas tivemos que esperar um pouco.
Nesse meio tempo, o Knocked Loose foi escalado pra tocar no Coachella 2023, o que resultou no single duplo Deep In The Willow/Everything Is Quiet Now — oficialmente chamados de Upon Loss Singles. Esse single duplo surgiu como uma forma de exercitar o som que veio a calhar nos anos seguintes com o novo produtor Drew Fulk, mas também veio como uma forma de trazer algo novo para a tão aguardada apresentação no festival. Começou, então, um fato curioso: os fãs da banda começaram a acreditar piamente que o Knocked Loose iria pegar mais leve no som por conta do tanto que a popularidade da banda veio crescendo. E se Deep In The Willow/Everything Is Quiet Now prova alguma coisa é que o Knocked Loose nunca ligou pra esse tipo de coisa. Daqui pra frente, o som deles foi se transformando cada vez mais característico nesse híbrido de metalcore com horror, e ficando cada vez mais pesado.
Fato é que o Knocked Loose já estava a passos largos de se transformar em um novo zeitgeist da música pesada. E ninguém esperava o que estava por nos esperar.
O fantasma que permeia
Eu não gosto escrever alguma crítica que faça uma análise faixa-a-faixa de um trabalho, ainda mais quando se trata de um disco tão conciso e curto quanto o You Won’t Go Before You’re Supposed To. Acho que começo a soar maçante e repetitivo, e sem querer uso mais termos superlativos que eu gostaria. Mas pra eu deixar meu ponto claro, talvez seja necessário. E tem sido um texto difícil de escrever, porque o tema é algo que me agrada muito e tenho muito o que falar, mas não quero soar igual um personagem trevoso mal feito, e eu não quero convencer ninguém que não goste especificamente desse tipo de coisa que na verdade é algo bom. Mas ainda assim, vou tentar fazer do jeito que dá.
De uma forma mais concisa, depois de já ter feito grande parte desse texto e voltado pra introdução dessa parte, percebi que muito do que eu escrevo daqui pra frente tem a ver com minha experiência sensorial depois de ouvir esse trabalho. Então, antes de adentrar, eu quero tentar resumir em poucas palavras o que o You Won’t Go Before You’re Supposed To é: um compilado de pequenas histórias de terror, muitas delas evocando imagens típicas do gênero, como fantasmas, mostruosidades e frases que seriam consideradas como o próprio anti-Cristo sendo ditas no pé do seu ouvido. O disco é abjeto na sua essência, quase uma série de relatos horrendos, que é complementado pela produção e pelos timbres absurdamente pesados que evocam em momentos algumas armas de crimes inconscientes cometidos aqui. Desde armas mais clássicas de filmes slasher, como uma motosserra ou uma faca; até sons que parecem remeter a sacrifícios pra uma entidade maligna. Se isso não te agrada e tá aqui só pela minha escrita, primeiramente: muito obrigado por chegar nesse ponto. Em segundo lugar, eu não recomendaria esse disco pra você. E tá tudo bem, de verdade. Realmente não é música pra todos os gostos.
O nome do álbum, na verdade, vem de uma história bem amena perto do resultado final. Bryan Garris conta em entrevistas que tem muito medo de andar de avião, e certa vez quando estava a bordo de um, sua tensão era evidente. Uma senhora sentada do seu lado, para acalmá-lo, disse a ele: “você não vai morrer antes da sua hora”. Mesmo essa história estranhamente fofa de uma pessoa acalmando o vocalista em uma situação inócua, Garris diz que a ideia de You Won’t Go Before You’re Supposed To surgiu após o trauma da perda de um amigo de infância, atropelado por um motorista alcoolizado. O motorista, anos mais tarde, virou um homem convertido à religião e utiliza dela como uma máscara moral. O disco busca justamente levantar as contradições que a religião tem na sociedade norte-americana, tema que não é muito distante da nossa realidade, pensando que enfrentamos uma onda fascista que tem como grande norte moral a desculpa religiosa. Mas You Won’t Go Before You’re Supposed To não deixa de falar de outros temas, como a letra surpreendente de Slaughterhouse 2, que lida com temas sociais sob uma ótica da luta de classes.
Muita gente vem definindo o disco como uma espécie de “A24-core”. E eu acredito que seja por conta da ficção sônica que o Knocked Loose consegue criar. Guitarras que parecem motosserras, sons que parecem gritos de banshees, além de temas líricos que vêm direto de um personagem escrito pelo melhor roteirista de filme de terror que você possa imaginar. Tudo isso cria uma ambientação terrivelmente assustadora.
E um detalhe importante pra ser destacado é a escolha da banda de trazer novamente Drew Fulk pra produção do disco. Fulk tem em seu catálogo de produções, além de álbuns de metalcore e adjacentes, uma vasta produção de artistas de hip hop. Há algo de se notar aí, porque o jeito que Fulk materializa o som de forma que timbres complementam a história narrada pelas letras de Bryan Garris é algo espetacular, digno de pensarmos menos em virtuosismo técnico e mais em como o som como fonte primária de se contar uma história, como eu contei pra vocês o jeito que Eshun define a ficção sônica no início do texto. A manipulação do som, modulando suas frequências mas ainda as deixando como algo crível, é um feito impressionante do produtor nesse trabalho.
O que eu quero dizer com isso tudo é que o disco, além de contar várias histórias de terror, tem como complemento a atmosfera impenetrante de um demônio da paralisia do sono sufocando a gente durante o pesadelo mais realista que tivemos nas nossas vidas.
A quietude dos segundos iniciais de Thirst são um prelúdio propício para prepararmos ao que vem em seguida. A música logo transiciona para o grito amedrontador e inconfundível de Bryan Garris, que logo dá espaço ao bombardeio instrumental que segue sem dar sinal de respiro por boa parte do álbum. A presença já costumeira dos gritos graves de Isaac Hale é complementada agora pelos vocais rasgados e mais típicos do hardcore com a adição do guitarrista Nicko Calderon, que está na banda desde o Upon Loss Singles. Todo esse conjunto soa como explosões em um campo de guerra. Ou como uma cena de um filme de terror seguindo a matança de um serial killer. Os monstros começam a aparecer sonoramente, e cada música seus rostos atualizam no nosso inconsciente.
Apesar disso tudo, é curioso como o Knocked Loose consegue fazer melodias, ainda com um som tão pesado e guitarras com afinação tão grave. E essas melodias são surpreendentemente cativantes, de um jeito praticamente mórbido. Entram em conflito com a velocidade estonteante e as mudanças repentinas de ritmo, criando uma sensação inquietante de conforto no meio de um caos, com a certeza que o fantasma está na espreita do próximo compasso. A já citada Suffocate tem, nos momentos finais, um verso feroz que gruda fácil na cabeça.
I will dig until I find the fucking root
I suffered because of you
Os gritos de Poppy e de Bryan Garris se complementam de uma forma estranhamente familiar. Muitos comentários disseram que parecem dois irmãos cantando juntos1 algum ódio em comum. E o elemento mais estranho do disco inteiro também se encontra nessa música: um riff pesado com o ritmo de reggaeton. O reggaeton mais paquidérmico que podemos ouvir, diga-se de passagem.
A inquietude de ouvir um ritmo tão familiar desintegrado de uma forma que parece um monstro me lembra um pouco o conceito de fantasma que eu tanto gosto e já abordei em outro texto aqui. Mas pra resumir: o fantasma é uma ausência na presença e uma presença na ausência. Há uma presença de familiaridade que é ausentada pela completa obliteração do som. E o que transforma esse momento mais inquietante é o fato de ser o único momento no disco inteiro que algo similar é feito.
A letra ainda tem um tempo de dissecar sobre pessoas que foram amaldiçoadas por algum tipo de conexão, e que estão prestes a quebrar a corrente. Um sentido similar à letra de Jair Naves no Ludovic em Desova, com os “irmãos siameses em vias de separação”, mas em um contexto mais voltado ao metalcore. Em ambos os casos, há uma melancolia que é facilmente confundida com um ódio profundo.
Sinto que há muito mais a dizer em específico sobre Suffocate, mas que não diz necessariamente sobre a música em si. Ela me parece ser o início do zeitgeist cultural que temos aqui: com a participação de Poppy, o Knocked Loose se tornou tão inevitável pra uma parte da cultura musical que chegou a ultrapassar momentaneamente uma música da Taylor Swift na parada de “hits virais”. Agora vocês pensem comigo: como uma banda, com todas essas descrições que estão me fazendo sentir a Funérea, da animação Fudêncio, consegue ser tão popular assim? Como algo tão odioso e intenso, que fala sobre temas que são tabus no mundo, como a opressão religiosa, consegue, mesmo que em um breve momento, ultrapassar uma artista do tamanho da Taylor Swift? Esse ódio faz, de certo modo, o hardcore viver?
O ódio, inclusive, é uma característica permeante no disco inteiro. A voz de Garris, cada vez mais, parece com alguém carregado de um rancor profundo, que não deixa de dar um tom lírico praticamente amaldiçoado. O trauma da perda do amigo é constantemente retornado, dando ênfase em um ceticismo à instituição religiosa que supostamente salvou a alma do algoz de uma pessoa muito importante para o cantor. Em momentos, a sensação de vingança transparece no cantor.
No words can spread from a tongue removed
Don’t Reach For Me tem um efeito curioso. Essa música, na minha opinião, tem um dos pontos líricos altos no que se diz sobre criar imagens perturbadoras na nossa cabeça. E ainda assim é uma música que, se focarmos no fundo do barulho, percebemos resquícios de melodias, principalmente no refrão cativante: uma cacofonia absurdista que guarda um fundo de coerência em uma melodia instrumental, mesmo que sutil.
Mas ao mesmo tempo eu sinto que a música nos engana parcialmente. O fato do refrão da música começar com I dream of a cleansing wave/set me free, me faz crer que a melodia sutil das guitarras dá uma sensação de algo relacionado ao mar. E o riff que vai e volta me traz a memória de ondas passando nos ouvidos, uma estranha calmaria no meio de um mar tão mexido como é essa música. É um efeito curioso de praticamente achar beleza em algo tão naturalmente mórbido. A melodia, entretanto, logo após é apagada por um rápido grito gutural típico de canções de death metal. Sua inclusão parece uma espécie de jumpscare bem aplicado. Dá seu efeito desejado depois de uma construção impecável.
A guitarra sem distorções no segundo verso dessa música também me evoca a clássica trilha sonora de Psicose, do Alfred Hitchcock. Mas essa referência é completamente subvertida por conta da confusão que a gente já passa desde Thirst. Esses sons finos e constantes servem praticamente como uma calmaria antes da tempestade que vem no último breakdown. Aqui sim parecemos que estamos em uma zona de guerra: o som parece vir diretamente de uma artilharia em um front, com um ritmo de metralhadora que é ao mesmo tempo sufocante e empolgante.
Essa música, na minha opinião, contém uma das melhores produções no aspecto da ficção sônica do álbum. Além de muito coesa, há uma característica dramática em sua dinâmica, com momentos sutis que são imediatamente obliterados, melodias que logo são sufocadas pelo peso constante; tudo isso guiado pela angústia palpável do narrador.
Outro destaque dessa dinâmica vem logo em seguida, bem na metade do álbum com as músicas Moss Covers All/Take Me Home, de longe a mais experimental do disco inteiro.
Eu coloco Moss Covers All e Take Me Home juntas não por mero acaso. Além do fato das duas dividirem um clipe excelente, a primeira faixa parece ser de certa forma o inverso da outra, sendo Moss Covers All uma canção curta, de apenas 40 segundos, totalmente direto ao ponto, talvez a mais tradicional no ponto de vista do hardcore e do catálogo antigo da banda. Conta com um refrão cantado por Isaac Hale, que é intercalado por um dedilhado limpo de efeitos que nos dá uma sensação de tensão sem igual. A calmaria antes da tempestade aparece mais uma vez. Mas agora, a tempestade vem com temperos diferentes: Take Me Home, por outro lado, é uma música que tem um constante crescendo que tem uma resolução pouco típica em músicas do Knocked Loose. Aqui, há apenas uma ambientação, que é contorcida de um jeito que as guitarras parecem versões do submundo das sirenes de Silent Hill — se um submundo de Silent Hill for algo possível. Um senso de urgência tão palpável assim é atingido poucas vezes de forma igual a essa música: a agressividade do som das guitarras aqui é das que machucam os sentidos e que eu só posso imaginar como é ver essa música num contexto ao vivo.
Quero trazer destaque também para o primeiro single e penúltima música do disco, Blinding Faith, que curiosamente mistura elementos tanto de Don’t Reach For Me e Take Me Home. O senso de urgência no breakdown final está presente, só que dessa vez é um som estridente e lento, como um corte seco. A construção da música também traz um gutural de death metal, maior, mais sujo e igualmente necessário pra gente ter essa resolução caótica. Os sons fazem a gente imaginar um ritual similar à cena final de A Bruxa, de Robert Eggers, conseguindo atingir um estranho delírio com uma espécie de transcedência a partir do barulho. É uma espécie de conclusão, um encerramento adiantado que pega elementos de tudo que ouvimos até aqui.
Tudo em You Won’t Go Before You’re Supposed To é sufocante, tematicamente pesado. É um disco que tem a duração certa: 27 minutos, um álbum curto e intenso. Não me parece particularmente como um álbum conceitual, como a banda fez em A Tear in the Fabric of Life foi. É mais variado narrativamente falando no campo lírico, mesmo tendo um ponto de partida e uma conclusão bem nítidos. É um disco que, mesmo depois de tanto ouvir, traz alguns momentos que me causam arrepios genuínos. E é um dos melhores discos pra zé barulho do ano.
Eu acredito que o texto da semana que vem sobre o Cool World do Chat Pile será razoavelmente mais fácil tanto de escrever quanto de ler. Talvez pelo fato que o Chat Pile não é uma banda que em algum momento da minha vida eu tive de “acostumar ao som”, isso refletido até em quem é de dentro do gênero — sua popularidade imediata entre bandas do hardcore e do metal foi um fato incrível, mas vou deixar pra falar mais sobre isso na semana que vem.
O estranho de falar sobre o Knocked Loose, na verdade, é entender como uma banda que soa assim tá tendo uma repercussão tão grande. Existem várias outras bandas de hardcore excelentes que estão na estrada há anos, muitas delas que possuem um apelo que chega a ser pop. Mas nada tá fazendo tanto barulho quanto essa desgraceira que tem sido o Knocked Loose. Não só o show lotado do Coachella foi um feito impressionante, mas a presença de fãs ilustres da banda como Billie Eilish e Ethel Cain que me deixam perplexo, dando a entender o surgimento de um zeitgeist da música pesada que eu não consigo nem falar qual foi a última vez que isso tenha acontecido. E como esse zeitgeist é possível? Eu sinceramente não sei. Mas pra quem gosta do som da banda, tem sido um ano e tanto.
Antes de partir, algumas coisas fora do tema
Depois de ter feito esse texto trevoso, que não é tanto do meu costume, eu queria começar avisando que vou viajar semana que vem. Depois de escrever um texto tão denso quanto esse, nada melhor do que ir pro meio do mato fazer trilha.
Tá, na verdade foi só uma coincidência que eu já tinha marcado fazer essa viagem com a família nessa semana. Só deixando esse aviso por conta da possibilidade de eu atrasar o texto da semana que vem. Bom que eu estarei literalmente no meio do mato e vou ter um ambiente com mais tranquilidade e paz de espírito pra escrever sobre outro tema tão pesado quanto o de hoje.
Eu também não queria deixar de falar brevemente sobre o evento que eu fui no sábado passado, festival organizado pelo Fúria Coletiva, galera bem massa de BH que fez um rolê incrível no Armazém do Campo aqui em BH. Vi várias bandas incríveis, que quero ter algum dia a oportunidade até mesmo de entrevistar e trazer mais a fundo pra vocês. Os trabalhos começaram com a Gaspacho, que tem a Juliana Trevisan de baterista, uma das minhas amigas de mais longa data nesse mundo da música e que tá fazendo um som bem legal pra quem gosta de Sonic Youth e outras coisas dos anos noventa. Depois quem subiu ao palco foi a excelente Dirty Grave, que faz muito barulho de qualidade pra quem é do mundinho doom metal e um show absurdo. O rolê seguiu com a Polly Terror, que é pós-tudo: pós-punk, pós-rock, pós-metal, com uma presença de palco incrível. Ainda vi o Mães Morrendo com um sludge metal incrível e denso, do jeito que zé barulho gosta. Pra finalizar, um hardcore straight edge da excelente banda Tomar Control, que fechou a noite com chave de ouro de uma forma muito positiva. Um show pra alinhar os chakras de qualquer um que gosta de barulho.
Queria aproveitar e agradecer muito a companhia de todo mundo que esteve comigo lá, em especial a Ju Semedo, a Jackie, a turma do Gaspacho e o Breno da Roboto. Me senti muito acolhido no evento, e no fundo eu tava precisando disso.
Semana que vem eu trago informações sobre os sons da natureza de Ibitipoca ou alguma coisa assim.
E até lá, se você leu até aqui e gostou do meu trabalho, fica ligado que toda terça-feira tem mais texto sobre algum tipo de barulho diferente. Muito obrigado pelo apoio e até semana que vem!
O curioso é que o irmão de Garris já cantou junto ao Knocked Loose em uma ocasião filmada pelo canal hate5six. Trey Garris toca na banda de hardcore straight edge xWeaponX.
Boom demaaaais! Vou até ouvir de novo esse discão