Terça noise #8: Duplinhas do barulho, ou estética do caos de formações minimalistas
Há algo a se dizer sobre formações de bandas minimalistas. Você quer bandas que são praticamente orquestras? Hoje aqui não tem isso não.
Me peguei pensando muito durante essa semana sobre uma experiência que eu tive no início do ano e como ela impactou de uma forma bem intrigante minha forma de ouvir música.
No dia 24 de janeiro de 2024, eu vi o Lightning Bolt ao vivo. E parando pra pensar, esse evento foi, querendo ou não, um dos motivos pra eu ter começado essa newsletter.
Eu já conhecia Lightning Bolt a um tempo, a banda já era uma das minhas favoritas. Mas foi nesse dia que a chave de música barulhenta virou de vez na minha vida e desde então não consegui sair desse personagem — ou dessa faceta, melhor dizendo.
É genuinamente difícil escrever sobre uma experiência tão intensa, acredito que foi meu primeiro show de uma banda puramente noise na minha vida. Foi um furacão, uma experiência sensorial ímpar, tão intensa que eu não sei se teria coragem de ver de novo sem proteção auricular — fui juninho nesse aspecto.
E a origem dessa experiência transformadora e um tanto amedrontadora tem base em um único ponto, que vai além dos ritmos frenéticos, das experimentações quase psicodélicas e da energia punk da banda. Tudo volta pro volume do som daquela noite.
Nada explica a sensação de você sentir literalmente dor física por conta da altura do som que fez o álcool do meu corpo evaporar, sendo bombardeado com efeitos visuais provocados por luz negra e pelo excelente jogo de iluminação do show. E nada explica como eu me senti tão bem no meio dessa agressão aos sentidos.
Mas o que é mais fascinante ainda é a formação da banda. Eu até entendo os detalhes técnicos de afinação dos instrumentos e de como eles utilizam microfone. Mas ainda assim, é impressionante como o Lightning Bolt tem uma força de mover placas tectônicas com apenas dois instrumentos: um baixo e uma bateria.
Sim, o Lightning Bolt é um duo de noise-punk-jazz-psicodélico. Apenas Brian Gibson no baixo e Brian Chippendale na bateria e no vocal.
E eu parei pra pensar sobre bandas pra zé barulho que possuem formações não convencionais. Mais específico, essas formações mais minimalistas que chamam muita atenção. E eu quero apresentar algumas bandas que se encaixam nessa categoria e que são muito amadas pela casa. Pois bem, esse é o primeiro Terça noise que vai ser, objetivamente, uma lista feita pra enriquecer sua playlist. Não somente isso, esse texto é um convite pra vocês me apresentarem coisas que eu não conheça também!
E antes da gente entrar na lista propriamente dita, eu vou deixar algumas obviedades boas (como o White Stripes e o Japandroids) e outras obviedades ruins (que não serão citadas, mas vocês sabem muito bme quais são) de lado. Saibam que eu gosto bastante de alguns dos que ficaram de fora.
Sem mais delongas, vamos começar do começo dessa história.
Melt-Banana
Antes da Terça noise ser uma newsletter, a ideia começou fazendo posts no meu bluesky pra falar sobre alguns artistas que eu goste. Durou poucas semanas antes de eu me irritar com a limitação de caracteres e não achar que estava me expressando o suficiente. O Melt-Banana foi a primeira banda que eu falei nesse projeto.
Mas pra continuar a recomendação, tenho que fazer algumas ponderações: a banda nem sempre foi um duo. Até o álbum Bambi’s Dilemma, de 2007, o Melt-Banana tinha uma formação mais tradicional pra uma banda de rock, com guitarra, baixo e bateria. Foi só nos últimos dois discos deles, Fetch e 3+5, que a banda foi reduzida pra essa formação minimalista.
Pros não iniciados, Melt-Banana é uma banda japonesa formada pela vocalista Yasuko Onuki e pelo guitarrista/responsável por efeitos sonoros Ichiro Agata. Eu os conheci mais ou menos na época do lançamento do Fetch e, como disse no meu primeiro post, senti coisas que eu nunca tinha sentido ouvindo música. Se eu pudesse escolher ouvir algo pela primeira vez de novo, sem dúvidas seria o Fetch, principalmente por conta da explosão sensorial que a dupla joga na gente.
O Melt-Banana, na sua essência, é uma banda punk. E isso fica muito claro quando observamos músicas como The Hive, que não passa da marca de dois minutos e meio e traz uma verdadeira explosão de energia. Compacta, direta ao ponto e impressionante como a variação de instrumentos emulados pelos sintetizadores de Agata, que é complementada pelo vocal gritado e bastante colorido de Onuki.
Mesmo assim, o pé que o Melt-Banana tem no noise rock é o fator determinante de uma banda realmente, genuinamente diferente e que propõe algo novo.
E esse tal algo novo chamou a atenção de grandes artistas ocidentais, sendo que o Melt-Banana já realizou turnês em conjunto com bandas do calibre de Mr. Bungle, Melvins e Napalm Death.
Eu pagaria muito caro pra ver o Melt-Banana dividir palco com o Napalm Death pra ver como seria a reação do público. Digo isso por conta da especifidade do som do Melt-Banana, em contraste ao peso sufocante do Napalm Death. Minha cabeça consegue explicar a experiência sensorial de ouvir o Fetch pela primeira vez se eu volto pra infância, com aquelas balinhas que estouram na boca. É um som tão colorido e animado que traz uma sensação muito peculiar ao ouvi-los. E é uma das bandas com sonoridade mais peculiar que eu conheço.
A recomendação mesmo fica de ouvir o Fetch, um disco que vai direto ao ponto e é genuinamente hipnotizante. Se não for na primeira vez, eu recomendo muito tentar uma segunda vez. A voz de Onuki pode ser um tanto estranha na primeira ouvida, mas quando faz sentido, faz muito sentido.
Os outros discos do Melt-Banana, com maior instrumentação, são muito próximos dos trabalhos de Steve Albini. O músico, inclusive, assina produção de do álbum Scratch or Stitch, de 1995.
Street Sects
De algo extremamente pra cima, agora vamos dar uma breve visita ao inferno.
Conheci o Street Sects por conta de discussões na internet quando eles lançaram o disco End Position, de 2016, e eu honestamente até hoje não acho que compreendi direito o som que eles fazem.
Já vi pessoas descrevendo como “electro-industrial”, “noisecore”, “power electronics”, “digital hardcore” e até mesmo “cybergrind”. É nesse ponto que eu acho de verdade que nomenclaturas ficam complicadas.
Eu tenho pra mim que o Street Sects vem de uma corrente muito específica da música industrial. É interessante porque grande parte dos sons produzidos aqui são oriundos de sintetizadores. Música eletrônica no seu conceito que tem na sua execução uma fábrica de fazer pesadelos.
Mas fato é que o Street Sects é um duo de Austin, Texas, formado por Leo Ashline e Shaun Ringsmuth, que faz parte do excelente catálogo do selo californiano The Flenser (um dos meus álbuns preferidos, Cool World, do Chat Pile, que eu já falei por aqui sobre, também foi lançado pela Flenser). A Flenser é conhecida por lançar artistas obscuros que variam do soturno até o esteticamente feio. O Street Sects, no caso, faz parte da segunda parte.
O tom invariavelmente “dark” da banda é praticamente sufocante, com letras que pintam uma visão pessimista sobre a vida. De certa forma, o Street Sects parece estar alinhado com o espírito do realismo capitalista de Mark Fisher liricamente, no sentido que a banda chama muita atenção para a relação de saúde mental e trabalho. Por exemplo, em Our Lesion, Leo Ashline canta:
Do we seem miserable?
How should we feel?
When their fat hands
Keep reaching out to take what’s ours
They want us to like it
Our black hole
Settle in and get sucked down
Celebrate our decline
With closed eyes
Algo abertamente político, trazendo uma posição um tanto niilista sobre
Ainda sobre o som e nomenclaturas de gêneros, temos aqui no Street Sects algo que eu venho observado a um tempo. Há uma similaridade de como eu me sinto a respeito do power electronics e ao black metal, no sentido de eu amar a ideia básica de criar o que é mais próximo à anti-música possível. Mas as políticas por vezes abertamente fascistas de grupos desse gênero, que se confundem com pessoas só falando merda pelo puro belprazer do choque; além de um discurso de “purismo musical” me afastam muito dos dois gêneros.
Tudo isso pra dizer que e gosto muito de coisas que são inspiradas por características sonoras similares ao black metal e ao power electronics, mas que trazem pra uma posição política mais alinhada à minha, além de inserir novos elementos musicais aí. Tenho planos de escrever sobre como o black metal que não segue a lógica do purismo tanto ideológico quanto estético tem trazido algumas das bandas mais legais do mundo hoje em dia. Outro exemplo que eu poderia trazer nessa lista que já tá grandinha é o Wreck and Reference, colegas de Flenser do Street Sects que traz um black metal feito unica e exclusivamente com sintetizadores. Coisa linda de se ver. Fica aí a nota de rodapé do texto: ouçam Wreck and Reference.
Mas quanto ao Street Sects, eu recomendo fortemente o primeiro disco deles, End Position. Já aviso que é um disco tão rico em detalhes que chega a cansar um pouco. Eu mesmo ouvi ele enquanto escrevia esse texto e depois que acabou, tive que ficar alguns minutos no silêncio. Mas preparem-se pra uma porrada de música industrial com vários elementos diferentes. É um som muito único e feito de forma muito concisa.
Uniform
O Uniform é, de certa forma, o oposto do Melt-Banana no sentido da formação da banda. Enquanto o Melt-Banana começou como uma banda “cheia” e se transformou em uma dupla, o Uniform começou como uma dupla e hoje é um trio.
Mas eu vou me restringir a falar sobre o Uniform como duo, pensando nos primeiros discos deles.
De qualquer forma, eu nunca vou esquecer do meu primeiro contato com o Uniform.
Sempre tinha ouvido falar deles por aí, mas confundia com outra banda que tem um nome meio parecido.
E um dia o algoritmo do YouTube me recomendou esse vídeo.
Resumindo, é uma apresentação ao vivo da banda ainda como duo, entrando na parte de trás de uma carreta e começando a tocar a música Tabloid. O vídeo vai mostrando eles tocando enquanto alguém dirige a carreta pelas ruas de Nova York. Algo nesse vídeo me chamou muito a atenção, muito provável a emoção crua da voz do vocalista Michael Berdan, misturado com o instrumental à Nine Inch Nails na sua faceta mais agressiva orquestrado pelas guitarras ferozes de Ben Greenberg. Finalmente eu entendi o motivo das discussões na internet.
É cru e cruel na mesma proporção, tendo uma notável referência (novamente) de power electronics aqui. O disco que tem Tabloid, chamado Wake in Fright, de 2017, é provavelmente o musicalmente mais simples dos trabalhos citados aqui, mesmo sendo o mais visceral. Último disco da banda como dupla, é também o álbum que conseguimos perceber o minimalismo da formação, tendo uma sonoridade simples e mais direta. Acho que, de certa forma, é um trabalho mais acessível pra quem já tá acostumado com a música industrial dos anos 1990. Mas não deixa de ser um disco incrível.
E esse ano tem sido muito produtivo pro universo do Uniform. Ben Greenberg foi o produtor do disco Cool World, do Chat Pile, que citei acima. Além disso, a banda, agora com uma formação nada minimalista — Berdan nos vocais, Greenberg na guitarra, Brad Truax no baixo e duas baterias, sendo uma tocada por Mike Sharp e outra por Michael Blume —, lançou um disco tão perturbador que merece uma publicação só sobre ele. American Standard é, certamente, o disco mais visceral e íntimo do universo da música pesada em 2024.
O Uniform também é conhecido por fazer discos em colaboração com outros artistas. Um notável, feito com o The Body — outra dupla extremamente barulhenta —, chamado Everything That Dies Someday Comes Back, é genuinamente um dos meus álbuns preferidos da década passada. A intensidade da música industrial do Uniform com os gritos aterrorizantes do The Body faz uma combinação única. Pra trapacear um pouquinho, vou deixar também como recomendação a música Gallows in Heaven, até hoje a minha preferida das duas bandas.
E falando em The Body…
The Body
Eles são uma das coisas mais impressionantes que eu ouvi na minha vida.
Poucas bandas causam tanto desconforto na minha vida como essa dupla de Providence, Rhode Island.
Eu genuinamente acho que a voz de Chip King é a mais distinta no mundo do metal hoje em dia. Seu grito estridente é uma das coisas mais aterrorizantes que eu já vi na vida. É um grito carregado de sofrimento e de dor, que traz uma característica um tanto única pro gênero do sludge metal.
Musicalmente, o The Body também é um dos grupos mais distintos dentro do universo do underground. Sua formação, além de King na guitarra e no vocal, também conta com o baterista Lee Buford, que também fica por conta dos sintetizadores. Muito do The Body diz respeito a texturas musicais, não tendo quase nenhuma melodia no sentido tradicional da música. Inclusive, o nome da banda diz um pouco sobre esse tipo de som que a dupla busca: suas texturas percorrem pelo corpo do ouvinte, com um forte tom sensorial que faz parecer algo mais próximo de arte contemporânea.
The Body é uma constante destruição pra se criar algo novo, buscando sempre uma versatilidade constante. Por exemplo, o disco deles que eu mais ouvi, I’ve Seen All I Need to See, é um dos trabalhos menos adjacentes ao pop e menos extravagantes, abrindo um espaço muito grande ao harsh noise e à música minimalista. Os vocais de King são sufocados pelo drone ensurdecedor, surpreendentemente dinâmico pra um disco que consta com influências desses gêneros mais lineares (drone, sludge metal).
Tal dinamismo se traduz em trabalhos muito variados da banda. O legal de ver o The Body é a incerteza do que vai vir depois. Por exemplo, esse ano a dupla lançou um disco em parceria com a cantora de death industrial Dis Fig, chamado The Crying Out of Things. É um disco muito influenciado por música eletrônica. Os gritos de King continuam característicos, mas a pegada instrumental é mais próxima de algo que teria saído da colaboração de Trent Reznor com Atticus Ross. Sem contar com remixes que colocam influências inesperadas como o new wave, igual no caso de A Curse (Remixed by Moss of Aura). A banda é, nesse sentido, praticamente uma versão do submundo do King Gizzard and the Lizard Wizard, um dos grupos mais interessantes e imprevisíveis de se acompanhar.
O fato do The Body ser a segunda banda de Providence, Rhode Island citada aqui me fez crer que essa cidade pequena do nordeste dos Estados Unidos é praticamente uma utopia da música barulhenta. Então, vamos voltar mais uma vez pro início do texto pra explicar essa relação com Providence.
Lightning Bolt
Sim, eles também são de Providence, Rhode Island. Eu quero tirar mais um tempo pra falar do Lightning Bolt.
Afinal, eles são objetivamente uma das minhas bandas preferidas da vida. Uma banda que une tanta coisa que eu gosto em um lugar só, tão compacto em apenas duas pessoas.
Brian Chippendale na bateria e no vocal e Brian Gibson no baixo.
É impressionante o som que a banda consegue tirar com apenas dois instrumentos, sem muito auxílio de sintetizadores e outros aparatos musicais.
Apenas um baixo que usa uma corda de banjo para atingir notas mais agudas, com uma afinação de cello. Apenas um microfone construído pelo próprio Chippendale, usando (até onde eu sei) um microfone de telefone amarrado rente à boca. Apenas uma bateria tão caótica que parece ser tudo improvisado e fora do ritmo, mas quando vemos ao vivo dá pra saber que tudo é meticulosamente calculado.
Chippendale também faz quadrinhos, Gibson é um excelente desenvolvedor de jogos. Tudo na estética do Lightning Bolt grita energia, eletricidade. Muito colorido, quase psicodélico, mas feio o bastante pra ser punk. É uma das bandas com a sonoridade mais única que eu já vi na vida.
Os vocais de Chippendale viram um pano de fundo, quase um instrumento a parte para o caos que acontece na frente. O Lightning Bolt é uma banda que faz muito mais sentido ao vivo. A força imparável de Chippendale, dicotômica ao objeto imovível que é Gibson. É uma banda que, como eu disse antes, quer agredir os sentidos.
É punk, é psicodélico, é noise, é jazz, é um pouco de tudo. Tem os dois pés na vanguarda e fazem um dos melhores shows que eu já vi na minha vida. E no fim das contas são dois caras muito acessíveis e muito simpáticos. Conversei bastante com Gibson sobre seu trabalho no jogo Thumper e na franquia Guitar Hero.
O disco Hypermagic Mountain é uma experiência que genuinamente já me deu dor de cabeça ouvindo. Tenho que colocar o som bem baixinho. Mas ainda assim, é uma experiência sensorial ímpar. E eu também não quero enganar ninguém, recomendo mesmo é a discografia inteira dos caras.
E exsitem várias outras duplas barulhentas
Enquanto eu escrevia o texto, lembrava de outras duplas dentro desse contexto: o rock matemático do Hella, o próprio Hanatarash que eu falei anteriormente, o sonho febril eletrônico que é o Captain Ahab, os lançamentos sublimes de drone metal do Sunn 0))) e do Earth. Talvez eu faça uma parte 2 desse trabalho. Mas a conclusão que eu chego nisso tudo é que às vezes duas pessoas são o suficiente pra acalentar nossos corações com música subterrânea.
Essa sessão do “antes de irmos” da semana é mais uma reflexão do tema mesmo. Não tenho shows marcados pra ir na semana, não fui em nenhum show; mas fui numa festa esse fim de semana que parecia sair de um cenário de Vampiro: A Máscara — gótico é um rolê muito legal hehe. Mas tô num processo de autoconhecimento que em algum momento comento mais abertamente com vocês. Além disso, a escrita da dissertação de Disco Elysium tá a mil.
Semana que vem tem mais pra gente conversar sobre outro assunto qualquer. Enquanto isso, me recomenda aqui nos comentários bandas que são duplas, vou conferir todas!
Um grande abraço e até semana que vem!