Terça noise #6: Uma retroescavadeira como um instrumento musical
E outras aventuras atípicas de se criar uma música, ou uma anti-música. Ou algo que tá no limite entre música e performance, do abjeto ao sublime.
Certa vez, vi um vídeo na internet que me fascinou muito.
É um vídeo-ensaio de um YouTuber chamado Pad Chennington. O título dele é Japan’s Most Dangerous Band. E é um vídeo deveras curioso pro canal dele. O Pad é um dos nomes mais influentes no que se diz respeito ao vaporwave e a microgêneros de música eletrônica, temas que geralmente me interessam bastante.
Mas ele reslveu fazer dois vídeos pra apresentar o movimento musical do japanoise para sua audiência. Pra quem não conhece, o japanoise é uma vertente da música experimental, específico do Japão, que tem raízes no harsh noise e em outras formas de performance artística. O primeiro vídeo é uma análise do Pulse Demon, disco clássico pra gente com gosto esquisito de um artista chamado Merzbow. Honestamente, eu mesmo nunca tive tanto estômago auditivo pra aguentar muito além de ouvir alguns minutinhos desse disco. Tentando explicar de uma forma breve, Pulse Demon é um álbum de 73 minutos de duração que consiste única e exclusivamente de barulho não filtrado, provocando chiados e distorções constantes, com ondas sonoras praticamente impossíveis de ser compreendidas. Pelo menos, eu nunca consegui compreender muito bem. Acho o conceito muito legal, mas não é algo que me prende por muito tempo.
Curiosamente, sou grande fã dos trabalhos que o Merzbow faz em colaboração com outras bandas. Quando se trata de barulho, um dos meus discos preferidos da década passada é a parceria do Merzbow com o Full of Hell, banda de power violence norte-americana, apropriadamente chamado de Full of Hell and Merzbow.
Enfim, esse tal conceito geral do japanoise é muito bem encapsulado pela arte gráfica do Gerogerigegege — outra banda de japanoise bem conhecida por gente esquisita tal qual eu — que diz “Fuck compose. Fuck Melody. Dedicaded to no one. Thanks to no one. ART IS OVER”. É uma busca de subverter todo e qualquer sentido da música, a fazendo da forma mais abstrata, usando os métodos mais concretos — e logo mais entenderemos o motivo de tal concretude — que se pode imaginar.
Aí chega o segundo vídeo do Pad Chennington: Japan’s Most Dangerous Band.
Ele começa o vídeo fazendo uma pergunta um tanto absurda (que eu peguei emprestado pra usar de título no texto): “uma retroescavadeira pode ser um instrumento?”
A resposta é claramente não.
Mas depende.
Nos anos 80, em um dia fatídico da cultura do underground japonês, Yamantaka Eye transformou uma retroescavadeira em um instrumento musical. Ou pelo menos, ele tentou.
E esse foi o fim do Hanatarash. Ou pelo menos como a gente entende que foi o fim do Hanatarash.
Pra dar um pouco mais de contexto, o Hanatarash foi uma banda que consistia em dois caras, Yamantaka Eye e Mitsuru Tabata. Os dois faziam parte de algo que eu só consigo definir como a música conceitualmente mais extrema possível. Muita gente encaixa o Hanatarash dentro de outro gênero musical que se confunde com performance artística: o danger music. Sua ideia básica é todo tipo de música contemporânea que coloca tanto quem executa as performances quanto quem as assiste em perigo. Um exemplo bem clássico, bem… é colocar uma retroescavadeira em cima do palco e depois ameaçar tacar um cocktail molotov em cima desse mesmo palco. Ah é, teve essa segunda parte que eu não contei.
O Hanatarash não durou muito tempo. As casas de shows não queriam contratar uma banda tão infame por quebrar palcos e deixar espectadores em perigo. Ainda bem.
Nos anos 90, Yamantaka Eye focou mais em sua outra banda, chamada Boredoms, que até chegou a fazer turnê junto ao Nirvana. Desde então, não houveram tantos incidentes vindos das mãos desse artista. Mesmo assim, esse acontecimento me deixou com um impacto tamanho que desde então eu venho pensado no que é limite pra ser considerado música. Tenho certeza que há uma espécie de performance artística, das com maiores tendências destrutivas que eu já vi. Mas isso sempre me intrigou muito. E o acontecimento chama mais a atenção que eu nunca parei pra de fato ouvir Hanatarash.
Falar desse ocorrido, de certa forma, é um tanto clichê da minha parte.
Essa história de alguém destruindo um palco usando uma retroescavadeira me impactou tanto que virou clássico no meu vocabulário pra falar sobre factoides da música underground barulhenta. Triste que existem apenas fotos e relatos, não há registros de vídeo capturados desse momento. Eu sou o tipo de pessoa que sempre acha uma desculpa pra falar sobre esse evento, e sobre o conceito geral de artistas que utilizam de objetos não necessariamente musicais pra fazer música.
Eu também falo muito sobre o Einstürzende Neubauten.
Novos prédios desabando
O Neubauten é, objetivamente, uma das minhas bandas preferidas a pelo menos uns 7 anos.
Conheci através de Rafael Lamim, vocalista da excelente banda de pós-hardcore brasiliense Enema Noise e um grande amigo querido meu. Não me lembro as circunstâncias dos assuntos, mas Rafael me enviou o vídeo deles tocando Armenia no filme-show dirigido pelo cineasta do punk japonês Sogo Ishii, Halber Mensch — nota pessoal: escrever um texto analisando esse filme excelente.
Mas o Neubauten é mais conhecido por dois fatos: o primeiro é o fato de Henry Rollins ter uma tatuagem do símbolo da banda, presente nas artes gráficas e capas de álbum desde a estreia de Kollaps. O segundo, menos circunstancial e mais popular, é o fato de Blixa Bargeld, líder da banda, ter sido guitarrista do Bad Seeds, banda de apoio do cantor australiano Nick Cave.
Mas vamos lá, começar sempre do começo pra quem tá conhecendo esse grupo hoje: o Einstürzende Neubauten é um grupo alemão que surgiu em Berlim Ocidental no ano de 1980, três anos antes de entrar para o Bad Seeds. O nome da banda significa, na tradução que eu consegui achar, “novos prédios colapsando”. E é um nome bem auto-explicativo pensando nos primeiros trabalhos da banda.
O primeiro disco deles, o já citado Kollaps, tem uma característica peculiar que foi acompanhando a banda ao longo dos anos, com maior intensidade sônica nos primeiros lançamentos. O Neubauten utilizava de sucatas para fazer a parte percussiva de suas músicas, muitas vezes fazendo viagens até ferros velhos para conseguir fontes de sons para seus instrumentos. Com isso, o som da banda fica com grande ênfase em seu campo percussivo, conseguindo criar músicas que abrangem características que vão desde ser estranhamente dançantes até extremamente desafiadoras de se ouvir.
Outro ponto alto da banda é ver as performances ao vivo, principalmente no início da carreira. Por exemplo, em uma apresentação que ficou conhecida como Autobahn — que, apesar do nome, não tem nada a ver com o disco clássico do Kraftwerk —, um dos membros da banda cava um buraco com uma pá microfonada, enquanto outros batem canos e estruturas de metal com um objetivo da mais pura cacofonia. Como canções, é uma versão mais radical da ideia do punk e de tantos outros gêneros do underground de literalmente destruir o que a música. Como aparato estético, essas imagens ficam gravadas nas nossas cabeças com o fascínio de ver músicas sendo feitas com objetos não musicais. Um estranhamento cognitivo muito único, com um potencial destrutivo peculiar e mais controlado que o caso do Hanatarash.
Mas o mais interessante de ouvir algo do Neubauten em estúdio, dado contexto, é trabalhar com a imaginação de como esses sons que a gente ouve são feitos, e como muitos deles são coerentes. Um dos melhores exemplos é Yü-Gung (Fütter Mein Ego), segunda música do já citado Halber Mensch. Quais materiais eles utilizaram para fazer as várias melodias? Que tipo de liga metálica eles utilizam pra conseguir criar esse som específico no ritmo? E como esses objetos foram utilizados antes de se transformarem peças de uma orquestra cacofônica de uma banda raivosa da Alemanha dos anos oitenta? Todas essas dúvidas vão enriquecendo muito a experiência destrutiva que a gente tem com o Einstürzende Neubauten.
Agora, algo realmente curioso acerca da banda é o fato que Blixa Bargeld é uma espécie de personalidade bem reconhecida na mídia alemã. Tem até um vídeo icônico dele em um programa similar ao Mais Você ensinando a fazer um risotto. O Blixa é uma figura bem popular, com muitos registros de entrevistas e participações televisivas em situações completamente inócuas. Também vale notar que o Neubauten abrandou muito o som abrasivo que veio dos primeiros discos, mesmo que ainda há uma veia fortemente experimental nas suas composições. Por exemplo, em Silence Is Sexy, disco da banda de 2000, a banda faz uma forma de releitura que da famosa obra de John Cage, 4’33’’. Além disso, Blixa Bargeld já gravou com o compositor de música clássica italiano Teho Teadro, uma versão de The Empty Boat, canção de Caetano Veloso.
Acompanhar o Neubauten e redescobrir suas coisas pra escrever esse texto é muito interessante, pois percebemos que o Neubauten é uma banda que basicamente amadureceu junto com seus integrantes. De apresentações chocantes e uma grande admiração vinda de punks notórios; até uma forte presença midiática e, de sua forma, um mergulho no universo neoclássico, o Neubauten é uma banda que tem um pouco de tudo. Mas ver qualquer apresentação deles nos anos oitenta, sem ter muito conhecimento sobre a história da música industrial — como foi o meu caso quando ouvi a banda pela primeira vez — serviu como a lâmina cortando o olho na cena infame do filme Um Cão Andaluz, de Luis Buñuel. Foi um choque que me apresentou pra um universo incrível, e que me apresentou diversas novas formas possíveis de se fazer música.
Um galão d’água como um instrumento musical, e outras aventuras de shows inesperados em BH
Pra encerrar a parte dos instrumentos transformados em musicais — e cumprir o papel que eu me pus nesse texto, de ir abrandando cada vez mais o tema —, quero fazer uma breve menção de como eu descobri o Uakti.
Foi ano passado. Eu estava em uma feira do MST realizada no Parque Municipal de BH, que além de produtos produzidos pelo Movimento, havia um palco com artistas locais tocando, sendo a atração principal da noite o Pato Fu.
Alguns shows antes, um senhor subiu no palco e começou a tocar uma flauta improvisada, que tinha um formato estranho, criando um som muito meditativo. Pouco tempo depois, esse senhor pega um galão d’água vazio e começa a fazer sons com o objeto. E eu não tô brincando, de alguma maneira fiquei tão hipnotizado que não vi o tempo passar. Fui atrás de saber quem era. Descobri o nome: Paulo Santos, ou o Paulinho do Uakti.
Então eu fui descobrir um pouco mais sobre o Uakti. Eles foram uma banda de avant-garde de BH, que surgiu no final dos anos 70 e se permaneceu ativa até 2015. O grande artifício — e a diferenciação da banda — é o fato deles construírem seus próprios instrumentos.

E o Uakti foi uma banda super influente no mundo da música: chegaram até a gravar um disco com o renomado compositor de música clássica Phillip Glass, um disco excelente chamado Águas da Amazônia. Eles também certamente influenciaram bastante outra banda brasileira que eu gosto muito, o Hurtmold. Dentro do tópico do texto de hoje, eu já vi um show do Hurtmold feito inteiramente com instrumentos improvisados de canos de PVC, quase dez anos atrás. Mas já é tanto show que esse me falha um pouco a memória pra escrever um pouco mais sobre.
Fato é que o som que eu testemunhei no dia do show do Paulo Santos pode vir carregado de adjetivos superlativos, mas eu acho que o que mais consegue definir é uma sensação inesperadamente sublime. Desde então, virei grande fã do Paulinho e da Uakti, ansiando muito ver um show deles novamente.
Antes de terminar, algumas coisinhas a se dizer
1 - Tem o Hermeto Pascoal. E o Tom Zé.
Eu sei. E é quase uma crueldade deixar esses dois só como notas de rodapé num texto com esse assunto.
Mas eu sinto que no fundo muita gente sabe. E sinceramente, não tenho muito a acrescentar sobre o Hermeto do que já foi dito sobre ele. Gosto muito dele, uma das músicas preferidas da minha mãe é dele, e ele vem fazendo esses experimentos com novas formas de fazer música desde muito antes de eu me entender por gente. O cara é foda, é uma referência. A mesma coisa do Tom Zé. Outro gênio. Pra mim, o incompreendido da galera da Tropicália. Mas não sinto que tenho muito que falar sobre eles, mesmo sendo um grande fã das obras.
Mesmo assim, não queria deixar de citar esses dois artistas tão importantes pra história da música brasileira. Afinal, aqui no Terça Noise a gente tem dois pés no barulho; mas a gente gosta de tudo e mais um pouco. Tanto que eu trouxe o Uakti hoje, um som bem menos inóspito do que muita coisa que a gente fala por aqui. Mas que vem carregado de uma experiência ao vivo que realmente foi chocante pra mim.
E falando em experiências ao vivo:
2 - Como eu falei semana passada, fui no Metalpunk Overkill em BH nesse último sábado. Agora que eu tô começando a frequentar mais eventos assim, tô percebendo um senso de comunidade muito bacana nesse meio da música barulhenta de BH. Tô chegando agora, mas até o momento foram dois eventos excelentes de música pesada que eu colei nos meses de outubro e novembro.
Um breve comentário dos shows que eu vi:
Suffocation of Soul é uma banda de thrash metal baiano que veio pra representar uma tradição fantástica que a Bahia tem com o metal, que vai além do Mystifier. Troquei uma breve ideia com o vocalista depois do show e ele me falou de várias coisas legais sobre o metal baiano. Foi um convite pra me aprofundar mais ainda no universo do underground de lá. Também foi o primeiro show de thrash metal que eu colei. Experiência muito boa!
Agravo é uma banda sensacional de metalpunk feminista de SP, que fez um show impecável e rendeu um dos momentos mais emocionantes da noite. A primeira vez das meninas em território mineiro, fizeram um show muito energético, que encantou todo mundo presente. A recepção merecidamente calorosa da banda foi realmente impactante pra todo mundo lá, e deu pra perceber o tanto que a banda ficou feliz. E, vamos falar aqui, elas merecem muito toda a recepção positiva!
Inventtor é uma banda excelente, que traz um som bem único misturando doom metal com death metal. Esse show eu acompanhei de longe porque foi a hora que eu fui fazer um lanche, mas o som tinha muita qualidade e a banda também estava bem emocionada de tocar em casa. Foi uma excelente surpresa, mesmo tendo visto de longe!
Ran é a banda gringa do evento: um grindcore com passagens de death metal vindo direto da França. O show dos caras foi um rolo compressor. Intenso, direto ao ponto e surpreendentemente muito técnico, às vezes a gente se lembra do quão bom o músico deve ser pra conseguir tocar tão rápido com tantas variedades de ritmo em tão pouco tempo de duração nas músicas. Show que foi intenso de forma similar ao do Lightning Bolt que eu vi esse ano, mas com uma outra proposta. Tive a oportunidade de trocar ideia com eles também, arranhando um pouco meu francês e depois desistindo pra falar em inglês. Comentei com o baixista que vou no show do Dinosaur Jr nessa semana (spoilers) com a camiseta que comprei deles (spoilers) e ele ficou muito feliz porque a banda é uma das preferidas dele. Também pudera, o Dinosaur Jr tem simplesmente Lou Barlow no baixo. Também conversei brevemente sobre o Potence, banda que citei na semana passada, e eles ficaram super felizes dos amigos deles serem mencionados.
Ballet Clandestino fechou a noite de uma forma bem mais tranquila, trazendo um pós-punk paulista aos moldes de Patife Band. A banda tocou muito bem ao vivo, com as letras recheadas de cunho político, e fez todo mundo dançar esquisito, do jeito que o pós-punk tem que ser. Foi uma boa forma de encerrar o dia, com um som menos intenso, mas com uma apresentação de excelente qualidade.
Eu infelizmente não consegui assistir os shows do The Harpia e do Dischavizer. Mas vão ter próximas, tenho certeza.
3 - Como eu dei spoiler ali atrás, essa semana vou pra São Paulo no Balaclava Fest. Quem me acompanha aqui e for de SP, pode chegar pra me dar um salve. É um sonho que eu tô realizando de assistir Dinosaur Jr, uma banda que me acompanha a tanto tempo. Também uma oportunidade de finalmente ver um show do BADBADNOTGOOD depois de tantas chances que eu não consegui ver. Enfim, estarei lá e quem quiser dar um salve, vamo brindar a música e trocar uma ideia!
Ademais, não tem muito que acrescentar. Só agradecer a Carol e a Jackie por terem sido excelentes companhias no Metalpunk Overkill. Semana que vem tem mais terça barulho! Valeu demais e até lá!